Segue então esse presente de Grotowski: boa digestão!
O corpo-vida
Jerzy Grotowski
É necessário dar-se conta de que o nosso corpo é a nossa vida. No nosso corpo, inteiro, são inscritas todas as experiências. São inscritas sobre a pele e sob a pele, da infância até a idade presente. E talvez também antes da infância, mas talvez também antes do nascimento da nossa geração. O corpo-vida é algo de tangível. Quando no teatro se diz: procurem recordar um momento importante da sua vida, e o ator se esforça pra reconstruir uma recordação, então o corpo-vida está como em letargia, morto, ainda que se mova e fale... é puramente conceitual. Volta-se às recordações, mas o corpo-vida permanece nas trevas.
Se permitirem que o seu corpo procure o que é íntimo, o que fez, faz, deseja fazer na intimidade (em vez de realizar a imagem da recordação evocada anteriormente nos pensamentos), ele procura: toco alguém, seguro a respiração, algo se detém dentro de mim, sim, sim, nisso há sempre o encontro, sempre o Outro...e então aparece aquilo que chamamos de impulsos. Não é possível sequer formulá-lo com palavras. E quando digo corpo, digo vida, digo eu mesmo, você, você inteiro, digo. Algumas vezes a associação se refere a um momento da vida importante demais para nós para tornar-se objeto de monólogos na taverna, mas antes de qualquer associação – mesmo uma do gênero – é essencial o encontro aqui e agora com o outro, em grupo, essa presença viva: e a volta ao corpo-vida exigirá o desarmamento, a nudez extrema, total, quase inverossímil, impossível na sua inteireza. Perante um tal agir toda a nossa natureza se desperta. Portanto, o que é necessário? Algo que não seja barato. Uma doação. Eu não ousaria dar uma definição precisa, de resto, não se trata disso. Alguém que tenha experimentado aquela aventura surpreendente descobrirá as coisas mais inesperadas. Em primeiro lugar: que sabe muito mais depois do que antes: descobrirá coisas que não lhe passaram nunca pela cabeça. Em segundo lugar: que mesmo depois de um longo e extenuante trabalho está menos cansado do que estava antes de começar.
O ato do corpo-vida implica na presença de um outro ser humano, a comunhão das pessoas. Mas então até mesmo as nossas recordações são essenciais, quando se ligam a um outro ser humano, quando evocam aqueles momentos em que vivemos intensamente com os outros. Esses outros estão inscritos no corpo-vida, pertence-lhe por natureza. E se evocam com o corpo-vida o instante no qual vocês tiverem tocado alguém, aquele alguém se mostrará naquilo que vocês fazem. E talvez, ao mesmo tempo estará presente aquele que é o seu partner, aqui e agora, e quem esteve na nossa vida e quem vai chegar: e Ele será uno. Eis porque aquilo contrasta com o aprofundar-se em si mesmo, com concentrar-se em si.
É muito difícil passar daquela experiência na sua forma primeira, original, a algo que é um fato já nascido, limpo, sobre o qual é possível apoiar o pé, sem dissipar tudo. O que é necessário manter quando voltamos àquela experiência pela segunda ou terceira vez? A associação ou o movimento? Se vocês disserem: a “associação” é porque vocês existem independentemente, separadamente da suas associações. São, portanto, desmembrados. O que guia? O movimento ou a consciência? Então vocês são divididos. O corpo-vida não é associação nem movimento. A cada vez que se volta a isso, se percebe sempre de modo mais tangível. Portanto, se a quem age, sucede esquecer algo, alguém que é o seu ajudante – há um tempo atrás teria usado aqui a palavra diretor – pode vir em sua ajuda não descrevendo exteriormente aquilo que deu certo na primeira vez, mas com uma palavra que tenha o poder de despertar a vida, a vida daquele que deve agir. Faz algo do gênero, difícil de definir e o corpo- vida volta a existir.
Não é preciso ter pressa de passar para a montagem das seqüências. Voltar àquele instante da primeira tentativa, cada vez em direção à sinceridade do corpo, precisa no ato, que não retrocede; mas no entanto é diversa; aqui, hoje, agora com você hoje presente, com vocês hoje; e somente depois pegar os elos, como se fossem ilhas, e uni-los, para que se conjuguem em uma totalidade coerente, um pouco como um filme. Lentamente, lentamente, ... Para que o que está vivo ali, não morra; para que possa viver mais plenamente: livre.
1 comentários para maricota:
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